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Em Formação entrevista: Zygmunt Bauman

Entrevista concedida a Ana Manuella Soares e

publicada na Revista Em Formação – Volume 3, 2008




Zygmunt Bauman era sociólogo. Iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e em 1968 foi afastado da universidade. Logo em seguida emigrou da Polônia para o Canadá, Estados Unidos e Austrália até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 tornou-se professor titular da Universidade de Leeds. Responsável por uma prodigiosa e premiada produção, foi ainda professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia. Teve mais de dez obras publicadas no Brasil pela Jorge Zahar, dentre as quais Globalização: as consequências humanas, Modernidade Líquida, Em busca da Política, Vidas Desperdiçadas e Medo Líquido. Faleceu em 2017 aos 91 anos.


A seguir, publicamos o texto contido na Revista Em Formação sem edições.


Considerado um sociólogo humanista, Zygmunt Bauman consegue com brilhantismo o que a maioria dos cientistas procura fazer com o resultado de suas pesquisas. Em linguagem direta e simples, escrevendo para milhares e não apenas para iniciados, Bauman faz diagnósticos do complexo sistema capitalista globalizado. Para o professor emérito das universidades de Leeds e de Varsóvia, a sociologia tem hoje o papel de explicar como funcionam as relações de poder e de consumo na sociedade e de ampliar a visão dos indivíduos, alargando seus horizontes cognitivos, dando a eles condições de enxergar além do individualismo dominante.

Para o cientista social, não há como negar que a Terra é hoje “um planeta abarrotado e intercomunicado”. Na por ele chamada ‘modernidade sólida’, as ameaças para a existência humana eram mais óbvias. “Era óbvio, por exemplo, que alimento, e só alimento, era o remédio para a fome”.

Hoje, segundo o autor de Medo Líquido, publicado este ano pela editora carioca Zahar, os riscos são de outra ordem. Para além do palpável ou previsível. Não há como ver, ouvir ou tocar as condições climáticas que se apresentam cada vez mais ameaçadoras em um tempo não mais essencialmente natural ou histórico. Os níveis de radiação e de poluição, a disputa pelo controle mundial das fontes de energia não-renováveis e os processos de globalização das nações sem controle político, segundo Bauman, solapam as bases da existência humana e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem precedentes em nossa história.

EmFormação – A Era Moderna foi destinada a ser o tempo em que os fenômenos naturais seriam, por assim dizer, ‘dominados’ pelo homem. Após dois séculos de investimentos em ciência e tecnologia, no entanto, a humanidade parece estar totalmente vulnerável ao que o senhor chama de ‘caos de tipo natural’. Como o senhor analisa o alardeamento de grande parte da comunidade científica internacional de que o planeta estaria profundamente ameaçado por um aquecimento

térmico global?

Zygmunt Bauman – O “projeto de modernidade” foi uma guerra declarada à contingência, ao acidente, ao cego destino que golpeava esperanças, expectativas e planos humanos. O mundo deveria tornar-se transparente, previsível e administrável – e ‘a conquista da natureza’, que deveria submetê-la à razão humana e estender suas forças a serviço da segurança e da certeza humanas, era vista como um dos principais meios de atingir tal objetivo. Sob gerência humana – assim foi esperado e prometido – a natureza seria a garantia de certeza e segurança, e não fonte de perigo e medos. O que estou tentando explicar com o estudo dos medos que nos assombram dois séculos mais tarde é o motivo pelo qual essas esperanças foram golpeadas e por que nossas inseguranças presentes são, talvez, ainda mais aterrorizantes do que secas, enchentes e terremotos que atingiram nossos antepassados. Desastres naturais continuam ocorrendo ao acaso e sem avisos assim como ocorriam desde tempos imemoriais; o destino não deixou de ser cego e imprevisível. Ao invés de a natureza começar a se comportar tão ‘razoavelmente’ quanto nós, os humanos armados de razão, acreditávamos sermos capazes de nos comportar – são os produtos e produtos secundários de nossas ações humanas que nos atingem com a casualidade e a ferocidade dos desastres naturais. Além dessa espantosa visão de planeta superaquecido, há a perspectiva de uma crise de energia sem precedente que pode ainda retornar como uma nova onda de fome e revoltas dos famintos, ou do desgaste do suprimento de água potável… Ainda que seja longa a lista de catástrofes conhecidas e já temidas, sentimos que está incompleta – e esperamos que novos itens se adicionem a ela devido às horríveis descobertas que, via de regra, surgem tarde demais para que se possa prevenir o desastre…


Em Medo Líquido, o senhor analisa as origens e a trajetória dos temores do homem e sua busca racional pelo controle das intempéries naturais ou sociais. Barbáries morais impetradas por sociedades modernas como o genocídio nazista do século XX ou as recentes guerras terroristas entre nações ou, ainda, o estado de miséria que se encontra boa parte dos povos na África subsaariana, na América Latina e Ásia seriam provas de que o projeto da Modernidade teria fracassado?

Uma coisa é certa – o triunfo do novo modo de vida (ou seja, o estado de modernização permanente, obsessiva e compulsiva) não conseguiu tornar a crueldade menos frequente e suas vítimas menos numerosas. Mas as condições que precipitam a crueldade se modificaram no curso da história moderna. Você mencionou o genocídio nazista, o nascimento do terrorismo global e a amplamente espalhada miséria humana de uma só vez – mas esses fatos têm raízes diferentes. Genocídios nazistas (e também comunistas) foram o cúmulo do que chamo de busca ‘moderna sólida’ por uma linha de chegada para o tumulto

aflitivo da mudança perpétua; por uma ordem definitiva, um Reich milenar, uma sociedade completamente purificada (das raças do mal ou classes do mal), completamente regulada e administrada na qual nenhuma nova mudança seria solicitada ou bem recebida. Conforme Hannah Arendt apontou, a ‘tendência totalitária’ foi um traço endêmico de um estágio da história humana, e a maior ameaça foi a perspectiva de um estado todo-poderoso detentor de uma soberania ilimitada e indivisível sobre a vida e a morte de seus indivíduos. Desastres humanitários dos nossos tempos de ‘modernidade’ líquida brotam, ao contrário, da crescente lacuna entre nossa dependência mútua, que já é global, e das agências de ação (política) efetiva, que permanecem locais. Até agora, a globalização foi puramente negativa: apenas as forças que negligenciam leis e modos de vida locais, ignoram fronteiras e esvaziam soberanias (forças como o capital, as finanças, o comércio, a criminalidade, a violência, o tráfico de drogas e de armas etc.) globalizaram-se, mas instituições de representação política, legislações, poderes judiciário e executivo e controle democrático permanecem, assim como antes, confinados ao domínio do estado-nação – muito estreito para se opor ou lidar efetiva- mente com problemas produzidos globalmente. Daí a acelerada polarização de condições e perspectivas de vida, acoplada com a proliferação de sentimentos tribais e guerras, massacres e genocídios (de vizinhanças) locais. Para os problemas globais do nosso tempo, não há soluções locais praticáveis, mas não há até agora forças capazes de articular e impingir soluções tão globais quanto os problemas…


O senhor considera que vivemos um processo de ‘globalização negativa’, altamente seletiva do comércio e do capital, vigiada, sob a coerção das armas, do crime e do terrorismo, elementos que destroem soberanias e desrespeitam fronteiras entre Estados. No planeta globalizado, vivemos, então, sem segurança em relação aos fenômenos da natureza e suas consequências, tampouco em relação à barbárie social. Diante deste quadro, quais as chances de superação desta condição? É possível uma ‘globalização positiva’?

Essa é a maior das questões que a humanidade confrontará e será pressionada a responder neste século. Uma questão, podemos dizer com total responsabilidade, de vida e morte. Ou encontramos o modo de controlar as forças globais liberadas e, no momento, desenfreadas, ou desmoronaremos, mais cedo do que tarde, todos juntos. O desafio que todos confrontamos juntos é o de dar o mesmo conteúdo e a mesma realidade ao conceito abstrato de ‘humanidade’ assim como nossos ancestrais fizeram com o igualmente abstrato conceito de ‘nação’. E imbuir aquela ‘comunidade imaginada’ com semelhante espírito de diálogo, solidariedade, compromisso mútuo, com o qual a ideia e a prática de ‘nação’ têm sido saturadas. Sob condições de interdependência global, a sobrevivência não é um valor pelo qual diferentes agrupamentos humanos (sejam eles étnicos ou religiosos) podem significativamente competir, a sobrevivência de cada parte da humanidade depende da solução dos problemas globais, e devo repetir que os problemas globais somente podem ser resolvidos, se tal solução pode, de fato, ocorrer globalmente…

Este século será dedicado à busca (e esperançosamente à descoberta e ao estabelecimento) de instituições globais de representação, legislação e jurisdição pública, e à equiparação de seu poder ao poder já conquistado pelo capital, comércio, armas de guerra, criminalidade ou terrorismo… Eu não sou profeta e não posso antecipar a direção que nós, juntos, finalmente daremos à nossa história com- partilhada. Mas estou certo de que não há nenhuma alternativa ao direto confronto desse desafio.


Qual o papel das comunidades de pesquisadores e professores das chamadas Ciências Naturais e das Humanidades na construção dessa superação?

Um papel crucial… A particularmente espantosa e potencialmente mórbida natureza dos perigos contemporâneos é o mais frequentemente não visível dentro do campo da experiência individual: você não sente pessoalmente o ‘aquecimento do planeta’, a elevação de radiação deteriorando a qualidade da água e do ar, ou a ameaça de terroristas conspiradores preparando seu conluio, obviamente, com extremo sigilo. Menos ainda seria você capaz de deduzir as causas de todas essas calamidades se conseguisse percebê-las e nomeá-las. Sobre os perigos contemporâneos (rebatizados de ‘riscos’, porque talvez seja possível calcular sua probabilidade, mas não prever exatamente onde e quando eles atacarão) nós podemos apenas aprender com os especialistas, que têm acesso a dados muito mais amplos do que temos individualmente, e que conduzem sua investigação sistematicamente utilizando instrumentos de pesquisa inacessíveis aos homens e mulheres comuns. Daí a singular responsabilidade dos cientistas. E daí também a suspeita com a qual suas comunicações são frequentemente recebidas. Devido à invisibilidade dos riscos e à sua intensidade, é fácil encobrir sua presença e assim manter o público ignorante a respeito do custo real dos empreendimentos de negócios, políticos ou militares. É também relativamente fácil fazer o oposto, mas igualmente desastroso em suas consequências: exagerar ao ponto de até mesmo ‘inventar’ os riscos, intensificar os medos humanos e, depois, capitalizar em cima desses medos alimentados artificialmente. Companhias de marketing podem encher os bolsos graças às elevadas demandas de equipamentos declarados necessários para afastar o perigo ou, se a catástrofe anunciada não se concretizar, líderes políticos podem gabar-se de que algo foi prevenido graças ao energético combate empreendido pelo governo – uma pretensão de que a suposta ignorância pública não pode jamais ser colocada à prova…



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